Hoje vamos simplesmente copiar e colar uma crônica de Miguel de Sousa Tavares, publicada no jornal Expresso, no dia 29 de junho de 2009.
É aquela coisa, imigrante não pode emitir opinião, só omitir. Pois se imigrante fala alguma coisa é mal agradecido, cospe no prato que come, é xenófobo (o povo aqui adora esta palavra), entre outras coisas. Então já que imigrante não pode falar, reproduz o que português diz sobre o próprio país. Afinal o copiar e colar ainda não foi considerado ato xenófobo. Vamos a isto, com muito “prazere”.
Para quem nunca ouviu falar do dito senhor, Miguel de Sousa Tavares é português nascido no Porto, cidade ao norte de Portugal. É um advogado que abandonou a carreira, tornando-se jornalista e também escritor. Tem livros lançados no Brasil, como Equador (que virou novela por aqui), além de já ter sido ou ser colunista de diversas revistas e jornais portugueses. Ele é filho de uma grande poetisa portuguesa, desconhecida praticamente do público brasileiro: Sophia de Mello Breyner Andresen. Ela tem um poema intitulado Manuel Bandeira (leia aqui). O filho da poetisa, o Miguel, é um crítico social digamos um tanto radical às vezes. Para quem já leu Eça de Queirós, diria que, em uma opinião pessoal, ele tenha o mesmo estilo, a mesma acidez. Nesta crônica publicada no Expresso ele nos faz uma crítica, diria que, nem é assim tão ácida, mas corajosa, visto que, há certas coisas que acontecem por terras de Cabral que os portugueses fazem questão de não ver. Pronto, já parei.
Fotomontagem humorística baseada em opinião de Mário Lino sobre a Ota.
O outro nome citado no título do post (e da crônica) é Mário Lino. Este senhor é ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações do atual governo português. Foi um dos protagonistas de uma polêmica que já se prolonga há tempos, sobre a construção de um novo aeroporto para Lisboa, que foi resolvida porém não concluída. Defendia de forma intransigente a construção do aeroporto em uma localidade chamada Ota, que segundo sua opinião era um deserto, e acabaria por desenvolver-se com este empreendimento.
Para os críticos não é necessária a construção de um novo aeroporto visto não haver fluxo que justifique um aeroporto maior, assim como a localização também foi muito contestada pela distância de Lisboa, fazendo-se necessário não apenas construir o aeroporto em questão mas outras obras caríssimas que viabilizassem a utilização do mesmo pela população lisboeta e dos arredores. Detalhe, esta discussão sobre a construção do novo aeroporto durou cerca de meio século (não vou por em negrito para não me acusarem de xenófoba).
A crônica em si não fala apenas do tal aeroporto, mas das rodovias, ferrovias e tudo mais que há em Portugal, país abençoado com rodovias e mais rodovias… vazias, coisa que pode matar qualquer paulista de inveja. Fique com a crônica.
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ESTA NOITE SONHEI COM MÁRIO LINO
Miguel de Sousa Tavares
Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:
Paisagem típica das rodovias portuguesas.
– É sempre assim, esta auto-estrada?
– Assim, como?
– Deserta, magnífica, sem trânsito?
– É, é sempre assim.
– Todos os dias?
– Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.
– Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?
– Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.
– E têm mais auto-estradas destas?
– Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. – respondi, rindo-me. – E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?
– Porque assim não pagam portagem.
– E porque são quase todos espanhóis?
– Vêm trazer-nos comida.
– Mas vocês não têm agricultura?
– Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.
– Mas para os espanhóis é?
– Pelos vistos…
Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:
– Mas porque não investem antes no comboio?
– Investimos, mas não resultou.
– Não resultou, como?
– Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.
– Mas porquê?
– Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não ‘pendula’; e, quando ‘pendula’, enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de ‘modernidade’ foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.
– E gastaram nisso uma fortuna?
– Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos…
– Estás a brincar comigo!
– Não, estou a falar a sério!
– E o que fizeram a esses incompetentes?
– Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa… e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.
– Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?
– Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.
Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.
– Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?
– Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.
– Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?
– Isso mesmo.
– E como entra em Lisboa?
– Por uma nova ponte que vão fazer.
– Uma ponte ferroviária?
– E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.
– Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!
– Pois é.
– E, então?
– Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.
Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.
– E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta…
– Não, não vai ter.
– Não vai? Então, vai ser uma ruína!
– Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína – aliás, já admitida pelo Governo – porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.
– E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?
– Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!
– E vocês não despedem o Governo?
– Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo…
– Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?
– Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.
– O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?
– A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.
– Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?
– É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.
Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:
– E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?
– O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.
– Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?
– É isso mesmo. Dizem que este está saturado.
– Não me pareceu nada…
– Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.
– Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?
– Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.
– E tu acreditas nisso?
Barragem de Alqueva, Alentejo. Fica no rio Guadiana e é a maior da Europa.
– Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?
– Um lago enorme! Extraordinário!
– Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.
– Ena! Deve produzir energia para meio país!
– Praticamente zero.
– A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!
– A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.
– Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar – ou nem isso?
– Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.
– Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?
– Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.
Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:
– Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?
– Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.
Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:
– Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!
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Mini-vocabulário básico para tupiniquins que não vivem em Portugal:
TGV – Popularmente conhecido como Trem Bala.
Autoestrada – Algo próximo a uma rodovia estadual, que tem como finalidade atender núcleos urbanos de grande densidade demográfica.
Comboio – Trem. Os pendulares são aqueles que balançam para os lados quando fazem a curva, e tem uma velocidade superior aos trens comuns. Não temos disso no Brasil.
Vital Moreira – jurista português membro do PS (Partido Socialista), partido do atual Primeiro-Ministro.
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Queria agradecer a Isis por ter enviado esta pérola literária por e mail.
O texto foi publicado no jornal Expresso.